Ouvi Dizer

Ouvi dizer
Que o nosso amor acabou
Pois eu não tive a noção do seu fim.
Pelo que eu já tentei
Eu não vou vê-lo em mim
Se eu não tive a noção de ver nascer o homem.

E ao que eu vejo
Tudo foi para ti
Uma estúpida canção que só eu ouvi
E eu fiquei com tanto para dar
E agora não vais achar nada bem
Que eu pague a conta em raiva

E pudesse eu pagar de outra forma
E pudesse eu pagar de outra forma
E pudesse eu pagar de outra forma

Ouvi dizer
Que o mundo acaba amanhã
E eu tinha tantos planos p’ra depois
Fui eu quem virou as páginas
Na pressa de chegar até nós
Sem tirar das palavras seu cruel sentido.

Sobre a razão estar cega
Resta-me apenas uma razão
Um dia vais ser tu
E um homem como tu
Como eu não fui
Um dia vou-te ouvir dizer

E pudesse eu pagar de outra forma
E pudesse eu pagar de outra forma
E pudesse eu pagar de outra forma

Sei que um dia vais dizer

E pudesse eu pagar de outra forma
E pudesse eu pagar de outra forma
E pudesse eu pagar de outra forma

A cidade esta deserta
E alguém escreveu o teu nome em toda a parte
Nas casas, nos carros,
Nas pontes, nas ruas…
Em todo o lado essa palavra repetida ao expoente da loucura
Ora amarga, ora doce
Para nos lembrar que o amor é uma doença
Quando nele julgamos ver a nossa cura

Ornatos Violeta – Ouvi Dizer

Retrato em Branco e Preto

Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor
Já conheço as pedras do caminho,
E sei também que ali sozinho,
Eu vou ficar tanto pior
E o que é que eu posso contra o encanto,
Desse amor que eu nego tanto
Evito tanto e que, no entanto,
Volta sempre a enfeitiçar
Com seus mesmos tristes, velhos fatos,
Que num álbum de retratos
Eu teimo em colecionar

Lá vou eu de novo como um tolo,
Procurar o desconsolo,
Que cansei de conhecer
Novos dias tristes, noites claras,
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever
Pra lhe dizer que isso é pecado,
Eu trago o peito tão marcado
De lembranças do passado e você sabe a razão
Vou colecionar mais um soneto,
Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração

Chico Buarque

Cântico Negro – José Régio

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide!
Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!

José Régio  “Cântico Negro”

Miragem – Hélvio

Helvio-Miragem 

 

Mama não deixa-me levar

que eu não quero ir

chama essa senhora

para nos ajudar

 

mama
pede prá senhora
para eu não dormir
pra não me assustar
oh mãe

 

e aquela
cujo amor é dela
diz-lhe que eu a quero
e vou ficar aqui até de manhã

 

e agora
a tua mão na minha
ó minha querida
ó minha senhora

teus olhos e os olhos meus
miragem

 

e agora
todo o tempo é curto
tua voz me ajuda
me ajuda a aceitar
aceitar a vida
sorrir pra mim

 

e aqui o meu corpo inteiro
meu amor primeiro
meu amor verdadeiro
oh mãe

 

mas mãe
pede prá senhora
os anos que agora
no Carnaval do mar sumi
deixa viver

 

lá fora um canto na avenida
leva a minha vida
ó minha senhora
meus sonhos pelos sonhos teus
miragem

 

e agora todo o tempo é nosso
já não tenho medo
medo de aceitar
aceitar a ida
sorri pra mim

Quando me sinto só

Quando me sinto só,
Como tu me deixaste,
Mais só que um vagabundo
Num banco de jardim
É quando tenho dó,
De mim e por contraste
Eu tenho ódio ao mundo
Que nos separa assim.

Quando me sinto só
Sabe-me a boca a fado
Lamento de quem chora
A sua triste mágoa
Rastejando no pó
Meu coração cansado
Lembra uma velha nora
Morrendo à sede de água.

P’ra que não façam pouco
Procuro não gritar
A quem pergunta minto
Não quero que tenham dó
Num egoísmo louco
Eu chego a desejar
Que sintas o que sinto
Quando me sinto só.

Artur Ribeiro / Joaquim Ribeiro

do Amor

Não sei nada de Amor.

mas acho que serve só para dar, sem ter mais nada que esperar. O Amor a sério é vão, sem objecto, suporte ou dimensão. Quando penso que amo, e por isso me pareço altruísta, é quando é maior o engano, porque nunca foi tão egoísta – o bem que te quero e o tudo que faço por ti, faz-me tão bem, tão grande e tão feliz, que apenas pode ser por mim que faço tudo o que faço por ti.

o Amor que importa não é assim:

insano, ardente e enorme,
não quer sequer saber de mim
não tem caprichos, sede ou fome

o Amor verdadeiro não é este,
que me traz feliz o dia inteiro,
sem querer saber o que me deste
ou se está frio, ou se há dinheiro

não pode ser este o verdadeiro Amor
que me torna invencível e sem vaidade,
que ignora noite, desalento ou dor,
só conhece luz e felicidade e felicidade e felicidade e felicidade

o Amor importante não deve ser assim:
ao mesmo tempo muito e pouco,
harmonia e chinfrinim,
equilibrado e também louco

se calhar o Amor não é assim
sussurante e berrador,
Tum, tum, tum e plim, plim, plim
Escuro, branco e também côr,

Pois!
Na verdade isto não deve ser Amor

mas se o Amor não é assim
e se o devemos todos encontrar
ele que se esqueça de mim
que passe aqui sem parar

porque um dia deste-me um xi,
que guardei bem e para sempre,
não o devolvo nem a ti
nem a mais ninguém que tente

pode não ser Amor, ser só um xi, ser-te indiferente
podes nunca saber que é teu, o xi que falo a toda a gente

posso nunca ter coragem de te beijar até levitar
pode não acontecer nada e até pode o mundo acabar

mas o xi,
que guardo aqui,
no lugar secreto,
atrás do tecto,
onde há um leão
que guarda o portão
na sala mais funda do meu coração

É meu!
…e fico feliz
só de pensar
que me darás mais xis!

Ti            
Dezembro 2008

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