Matias

Matias é português, casado, benfiquista, católico e uma besta.
A sua mulher é uma feminista parva, que emite opiniões fortíssimas acerca de tudo, de forma violenta e pública.
Matias está invariavelmente contra as opiniões de sua esposa e tem vergonha de quase tudo o que ela diz e faz.
Matias decide divorciar-se porque não faz sentido estar com alguém que não faz sentido.

Matias vai viver com um amigo que é ainda mais benfiquista, mais católico e mais abestalhado.
A sua ex-mulher diria que ele é um gay reprimido, mas Matias sabe bem que aqueles abraços ao amigo só acontecem quando o Benfica marca e nada têm que ver com paneleirice.

Em pouco tempo Matias descobre que o amigo não passa de um panasca reprimido e, depois de ir morar sozinho, passa dois meses a ir às putas.
Sentindo-se de novo o pináculo da masculinidade, decide ligar à mulher que lhe diz que uma vez por mês contrata os serviços de um profissional para lhe “limpar as teias de aranha” e fora isso nem se lembrava que já tinha sido casada com um cão.
Matias recusa-se a ficar afectado. Não é uma gaja qualquer que o deita abaixo.
Pelo sim, pelo não, apanha uma carraspana de caixão à cova e apanha uma boazona na rua que leva 20€ por uma mamada.

Acorda 1 hora depois com o carro enfaixado contra um caixote do lixo. Tem vagas memórias de ter expulsado a meretriz ao pontapé depois de descobrir que era um travesti.

Liga imediatamente ao padre que era director do colégio em que andou em garoto e, com a voz sonolenta, o padre concorda em recebê-lo ao fim do dia.

O padre começa a conversa com a habitual paciência clerical e explicando que, “se um homem não tem objectivos, então também não tem utilidade”. A única coisa que preocupa Matias é o travesti. Quanto a isso o padre diz que há médicos que podem ajudar com tratamentos para a homossexualidade. Matias fica ofendido, solta impropérios e o padre, exasperado, manda-o para o raio que o carregue.
Não havendo raio, carregou-o uma maca da emergência para o hospital. Diagnosticaram-lhe diabetes, colesterol, triglicéridos e tensão alta, deram-lhe 7 medicamentos diferentes, para juntar aos anti-depressivos, aos ansiolíticos e aos calmantes, perfazendo 32 pastilhas diárias. Teve sorte – foi um AVC fraquito.

O tempo foi passando e com ele o número de pastilhas foi aumentado, assim como a quantidade de Gin, que paulatinamente ia arruinando fígado e carteira.
Ao fim de poucos anos Matias passou a ser só um limão. Amargo, amarelo e intragável. Deixou de ser português, porque Portugal era uma merda, deixou de ser benfiquista, porque o Benfica, mesmo quando ganha, joga sempre mal. A mulher e os amigos eram todos uns ressabiados invejosos e Deus não queria saber.

A 1 semana de fazer 50 anos estava acabado. Mal sabia que ainda duraria mais 42 anos. Mas contar o resto seria só tortura.

Tocs de tacão. (ou texto inútil)

Foi aquele que achou que o que foi, foi mau; como se a árvore fosse pau e as costas que açoita fossem tidas no achamento de culpa.

A noite cai lenta e pesada
mas não se aleija, fica só amassada
A mulher, que vestia amarelo vivo,
antes do Sol debandar
agora carrega um beije deslavado
que a desiluminação pública não deixa brilhar

Faltam 20 tocs de tacão da mulher para a meia-noite e em breve as suas passadas passarão a ser mais sinistras,
porque depois, alumiadas, já têm sombras e perigos possíveis.
Nunca houve um único crime em locais sem sombra. Nem um na história de toda a humanidade, até porque há uma lei natural, que muito poucos conhecem, que diz que onde não há sombra, não há crime. Aliás aqueles que temem o escuro são tolos. No escuro não há sombra e, por isso, a única coisa a temer é o próprio. Nada de mau virá de outros no escuro, já de si próprio…
O precipício não se coloca no caminho do incauto só porque está breu.
O mal não foi parido pela Maldade! Foi aquele que achou que o que foi, foi mau; como se a árvore fosse pau e as costas que açoita fossem tidas no achamento de culpa.

Enquanto pensamentos fogem do nexo, a mulher de vestido ex-amarelo-vivo agora está realmente preocupada com a sensação de estar a ser seguida. – Se calhar até está, mas tudo o que acontece, será fatalmente seguido por outra coisa. – A questão aqui será se a mulher estará ou não a ser perseguida – este prefixo muda pouco, mas a insanidade latente disfarçada de perfeccionismo deste relato, torna dificílima a descrição que se quereria lógica, tornando-a praticamente ininteligível.
pencil_sketch_15276344288111922766423.pngA mulher entretanto partiu um tacão e parece agora ter calçado uma sabrina no pé esquerdo enquanto mantém o tacão altíssimo no pé direito, reduzindo assim para metade os tocs do seu caminhar cada vez mais tenso. Poderíamos saber como se partiu o mencionado tacão, não fosse a parvoíce de quem nos não descreve a acção, simplesmente para se perder em idiossincrasias ou, melhor dizendo, ideoapatias que servem só para quebrar o ritmo e a vontade de ler o resto da estória.
Opa! E lá vai outro tacão – mais uma vez teremos que ficar sem saber como é que isso aconteceu, mas pelo menos agora podemos conjecturar que terá sido a própria mulher que decidiu sabrinar o outro sapato para efeitos de equilíbrio. Apesar disto, um narrador mais competente, certamente notaria que a mulher agarra o tacão com o seu punho fechado, como que preparando-se para o usar como arma.
Mas o que temos é uma descrição na qual não se percebe qualquer ameaça, a não ser a das sombras e a ausência de toc-tocs que os ex-sapatos-de-salto-alto agora não fazem.

A mulher está já numa passada no limiar da corrida, dando pequenas corridas intercaladas com passada menos rápida os tocs que antes se ouviam, agora recomeçam a ouvir-se, não se percebendo se são outros tacões que os fazem, ou se é o próprio coração da mulher, que cada vez se faz ouvir mais alto.
A tensão aumenta e pela cabeça da mulher passam imagens de facas ensanguentadas, pássaros perversos que debicam cabelos e zombies que arranham portas desesperados. A tensão é tanta que agora a mulher não consegue ouvir mais nada, só a ofegância das goladas de ar que lhe entram e saem pela garganta contida para não gritar.
Tudo isto caminha para um final inevitavelmente trágico, apesar das referências que ocorrem à pobre mulher não serem mais do que reminiscências daqueles filme de terror manhosos que o seu ex-marido adorava e a obrigava a assistir no “home-cinema” que instalara na cave de sua casa.
E enquanto se imagina a cave de uma personagem menos que secundária, assim se perde a protagonista, que desapareceu, talvez por ter dobrado a esquina, ou até por se ter desmaterializado, como tudo fará um dia.
Devia ser este o final da estória, porque em boa verdade nada mais há a contar, mas a contaremos ainda as palavras, que serão seiscentas e oitenta e oito, pelo último ponto final.
Fica a conclusão e até a moral final para quem as quiser fazer, quanto à pusilanimidade desta estória, fica uma espécie de ideia de coisa.

O animal é parvo

O animal queria reconhecimento.
Trabalhava 16 horas por dia e ainda estudava mais 3. Ficava sem comer para ter dinheiro para comprar livros. Não tem amigos para conversar, nem amigas para apaixonar.

Pintou um quadro anónimo para não alimentar a sua própria vaidade, mas deram a vaidade a quem o descobriu, mesmo sem se revelar o autor. Depois escreveu um livro, mas ficou tão famoso que teve de mudar de nome.

Quer amigos verdadeiros, mas não sabe que todos são. Pensa que, se têm interesse nele, são interesseiros, e por isso esforça-se por afastar todos os que se interessam por ele. Depois, quando já ninguém quer saber dele, dedica-se a fazer coisas maravilhosas para que se voltem a aproximar.
O animal é parvo. Compôs uma suite para quarteto de cordas tão famosa que tornou rico um pobre professor de piano da sua terra, mas depois achou-o desonesto porque ficou com a glória que não era dele. O professor repensou, deu a glória que devia ao animal e ele… ficou fulo porque os jornais todos diziam que se tinha redescoberto o autor do livro famoso! Achou o professor desonesto porque tinha prometido não divulgar!
Achou-se execrável porque culpava o professor por fazer tudo e o seu contrário.
Pareceu-lhe tudo injusto, e decidiu acabar consigo próprio. Gastou todo o seu dinheiro a comprar um carro blindado acelerou a toda a velocidade e atirou-se junto com o carro para o rio Vouga. Não morreu, recuperou e no dia em que teve alta do hospital da Universidade de Coimbra comprou uma passagem para o Egipto. Atirou-se ao Nilo e nunca mais ninguém o viu.
Não apareceu em nenhum obituário, porque ninguém sabe como é que se chama realmente.
Poderia ter sido o mais brilhante ser humano que alguma vez viveu, mas como nunca quis nada fácil, será para sempre quase nada.

Jun2009

Corte de cabelo

haircutO homem decidiu cortar o cabelo, estava farto de ter aquela melena informe e inexpressiva e, por isso, tomou a opção radical de fazer um corte bem aprumado, quase militar.
O barbeiro era daqueles inpirados artistas que acham que o corte de cabelo é uma obra de arte ambulante e portanto demorou o seu tempo a esculpir, com tesouras de todos os tamanhos e feitios, o que achava que seria o corte perfeito para aquela cabeça.
O homem andou orgulhoso e com a cabeça bem erguida durante todo o dia. Quando finalmente chegou a casa a mulher olhou-o realmente chateada e disse-lhe:
– Não me digas que ainda pagaste por isso? – Enquanto lhe apontava a cabeça.
Noutro dia qualquer o homem teria ripostado e até talvez ofendido a mulher tanto quanto o que ele se sentira, mas naquele dia ficou desolado, nem sequer triste só desolado.
Quando a revolta pelo despoio da mulher cresceu nele, em vez de gritar ou de lhe dizer disse simplesmente:
-Vou beber uma cerveja.
– Mas tu nem sequer bebes cerveja! – atirou-lhe a mulher incrédula.
– Pois não.
Foi a última vez que falaram. O homem continuou sem beber cerveja, mas agora o cabelo muda de côr todos os meses.

Guarda prisional

Cometi alguns erros quando era novo. Não estudei o que devia e quando acordei já era tarde e tinha que trabalhar.
O meu pai sempre foi muito claro:
– Estudas até quando quiseres, mas se reprovares vais trabalhar.
Foi o que fiz. Sempre fui bom aluno – nunca o melhor, mas sempre dos bons – excepto a Meio-Físico e Social, aí era mesmo o melhor e cheguei até a tirar dois dezanoves e um dezanove e meio que a minha mãe manteve colado ao vidro do hall de entrada durante todo o ano!
Tive uns grandes pais. Minha mãe era a mais atenciosa do mundo e meu pai era exactamente o que eu gostaria de ser: forte, disciplinado e justo. É verdade que não era dado a grandes afetos, mas quando me dizia: – Bom trabalho rapaz. – Fazia-me sentir o maior do mundo.

Por volta dos meus 16 anos começaram a aparecer pela Vila alguns rapazes com motorizadas. Fiquei fascinado e, por mais ridículo que agora me pareça, foi por causa das motorizadas que decidi deixar de estudar, para ganhar dinheiro para comprar uma Yamaha DT.
Minha mãe tentou demover-me, sem sucesso e meu pai, como sempre, não me contrariou; impôs condições: eu teria um ano para arranjar o meu próprio sustento e sair de casa. Assim fiz.
Meu pai morreu 17 meses depois de eu sair de casa e minha mãe seguiu-se-lhe meio-ano depois.

Andei tresmalhado por meia-dúzia de anos – sempre de capacete debaixo do braço – e não sei por que vias travessas vim parar à Policia Prisional.

É engraçado como é que um rapaz do campo acaba por vir parar a uma prisão de paredes de betão. Acho que a minha pena é demasiado alta, ninguém merece estar confinado a estas paredes por tanto tempo. Se calhar é porque continuo solteiro, e já não vou para novo. A partir dos quarenta começam-nos a achar demasiado velhos e é dificil arranjar com quem ver o pôr-do-Sol.

Um guarda prisional devia ter autoridade, estabilidade e sentir-se orgulhoso da sua profissão, mas o que vejo na maior parte dos meus colegas é vergonha. Quase todos têm problemas de dinheiro e assim torna-se mais fácil suborná-los. Eu sei que pelas costas me chamam nomes feios porque nunca entrei em nenhum desses esquemas, mas com o passar dos anos aprenderam a sair do meu caminho e em troca eu saio do deles. O problema deste ambiente é que eu, e quase todos os meus colegas, estamos mais presos do que os próprios reclusos. Temos horários rígidos a cumprir e a rotina é tão grande que é dificil manter a sanidade. A maior parte dos guardas faz muitas horas-extra, porque quase todos são de outras partes do país e não têm tempo para ir à sua terra nas folgas. Eu também trabalho cerca de 12 horas diárias, mas como o trabalho é sempre igual, torna-se fácil e posso ler muito.

Um dia ainda vou escrever ao Presidente da República para lhe dizer acerca de uma ideia que ando a magicar à anos:
Criar uma prisão ao ar livre, numa daquelas terras do Alentejo que estejam para lá ao abandono, onde cada recluso pudesse ter um bocado de terra, por mais pequeno que fosse, pelo qual fosse responsável e do qual podia fazer algum lucro, que até poderia ser sujeito a um aluguer. Acho que era uma forma de reabilitar as terras e ao mesmo tempo os reclusos. Claro que há sempre aqueles que não querem isto – tudo bem, inicialmente fazia-se uma coisa apenas para voluntários e depois, com o sucesso que teria de certeza que ia haver mais inscrições do que vagas.

Está decidido, um dia destes mando-lhe mesmo uma carta. Até vou começar a escrever já…

30-10-2010

Cortejo (Queima das fitas)

A rapariga esperou horas para poder vê-lo
esperou, esperou,
mas não o viu!
Estranhou…
afinal era o seu ano de finalista e com certeza, ele não iria perder a derradeira oportunidade para passar na tribuna.
Preocupou-se durante algum tempo, mas depois acabou por se convencer que era natural que não o conseguisse ver no meio de tanta gente vestida de igual.

Estava já sem esperança, a preparar-se para regressar a casa derrotada pelos dois pares de horas à espera em vão, quando o viu mesmo à sua frente, apenas separado por quatro ou cinco metros.
Baixou o olhar e passou ao lado dele, sem que ele a visse.
Arranjou o cabelo, reprimiu-se por não vir mais bem vestida e, quando ele já se encaminhava novamente avenida abaixo, foi ter com ele decidida.
Ele sorriu, ficou sinceramente feliz, apresentou-a aos dois amigos, disse-lhe que estava feliz por ela estar ali num dia tão importante. Abraçou-a, ainda que brevemente.
Entre hesitações, emoções e pressa dos amigos dele, acabou a rapariga por ficar radiante por ter tido aquele bocadinho de céu; mas ficou também irritada por não o ter roubado aos amigos ou roubado um beijo, ou pelo menos um abraço mais longo.
Acabou por lhe dizer que gostava dele, mas apenas por gestos, deixando a mão escorregar na dele devagarinho enquanto se separavam…

Ti           
10 Maio 2007

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